“Manhãs” é um espetáculo de dança-teatro (ou teatro-dança) criado a partir do poema “As Quatro Manhãs”, do poeta português Almada Negreiros (1893-1970) – contemporâneo de Fernando Pessoa.

"O meu sonho é bem melhor do que no programa
que hoje o destino me dá!
Eu sempre sonhei com ser Eu
mas não como me vejo no filme,
nem como me olho no espelho,
nem como me oiço no disco,
nem como digo na rádio!

Quem alterou o espelho?
quem falsificou o disco?
quem torceu o enredo?
quem mentiu a minha voz?
Eu não aqueci quimeras
nem preguicei fantasias
nem rabisquei confusões,
nada que não fosse eu
e dignidade”

Almada Negreiros

A existência. Viver dentro de um mundo já padronizado, todo dominado; a luta por ser; o sonho e a realidade juntos e separados; quem sou, quem fui, quem serei, o que sou, os caminhos, a colonização, o saber, o não-saber, a exploração, o instante presente, o passado-futuro são temas abordados por Almada Negreiros, que estes artistas pesquisam e levam à cena com sensibilidade e beleza – sem abandonar o tom provocativo e questionador imanente à obra do poeta.  

A cena prima pela simplicidade no espaço, sem cenários, focando no movimento cênico dos intérpretes. 

Concepção e processo compartilhado

A concepção das coreografias é realizada a partir da tradução sensorial das palavras e imagens poéticas, versos em movimento de forma a se compor partituras físicas. 

Nosso estudo técnico parte do mapeamento ósseo e suas relações entre peso, vetores de força, e as distintas dinâmicas deste diálogo.

Noções como aleatorismo e temporalidade, repetição (e diferença), subjetivismo, ossatura, eixo, pele, respiração, transpiração, visualização imagética, são algumas das ideias que permeiam a concepção. 

A trilha musical tem um sabor especial no que tange o conceito geral da concepção deste trabalho: o aleatorismo. É uma música que não serve diretamente de ilustração ou sustentação dos gestos na criação dos movimentos, sendo, então, um elemento surpresa à cena para os performers, que entram em contato com a música apenas no momento da apresentação. Busca-se assim que o acaso de cada instante, que o encontro de movimento e som, estejam presentes na composição do espetáculo: um ritmo inesperado, dinâmico, com frescor e potência do novo, do aqui e agora ecoando presentificado no corpo do intérprete.

A origem do conceito deste trabalho tem duas raízes complementares: os estudos da graduação em Comunicação das Artes do Corpo, PUCSP (1999-2003) e a pesquisa de mestrado onde um dos estudos de caso focou na aleatoriedade com a performance “Olho Caos“, apresentada no Teatro Oficina (2006).

Este espetáculo foi composto e apresentado na Funarte em setembro de 2015 dentro do evento “Noites Inquietas”, na sala – e em homenagem a dançarina moderna – René Gumiel.

À René Gumiel

Tive a oportunidade de encontrá-la algumas vezes pessoalmente. Acompanhei seus últimos dias por aqui na Terra. Lembro-me da presença em cena, mágica, ocupando como ninguém todo o espaço entre as galerias flutuantes do Teatro Oficina. De repente soube acamada por uma queda, esses acidentes triviais que podem nos acontecer a qualquer momento e fui visitá-la em casa com sua discípula, a atriz Sylvia Prado. Dias depois havia sido encaminhada pro hospital, e, sem demora, partiu… Acontecimento doloroso e incompreensível, para uma mulher que exalava eternidade e que, quando perguntada sobre sua idade respondia em tom ironicamente profundo: “Trrês milll años” (dizia ela em seu português cheio de sotaque). Além das memórias, há muito de você espalhado por nossas casas – esse desenho que nos representa, fotos e a opulenta poltrona, onde tomava sua taça diária de vinho e fumava pausadamente seu cigarro. Passo horas a seu lado. Sim, sinto sua presença observadora enquanto medito, reflito, imagino e ajo na busca cotidiana do along AR.

Ficha Técnica

Concepção e trilha musical: Ricardo Nash
Intérpretes-criadores: Camila Mota, Ricardo Nash, Rodrigo Andreolli, Sylvia Prado
Iluminação: Greta Liz
Vídeo: Igor Marotti

Fotos: Rai Nóbrega